quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Chegou a prima Vera!

Eu sempre tive uma mania estranha de ouvir as palavras e ficar imaginando de onde elas surgiram. Quando eu era criança, evidentemente isso era muito mais forte, hoje em dia já quase não me apego a isso, mas ainda me lembro.



Lembro especialmente de uma palavra que eu ficava pensando muito e que até hoje penso um pouco quando ouço: Primavera. Na minha mentalidade infantil, pensava: "Será que alguém tinha uma prima chamada Vera que nasceu nessa época do ano?", dentre muitas outras hipóteses, uma mais maluca do que a outra.


Hoje é o primeiro dia da primavera e me veio esta memória. É engraçado como as crianças se preocupam com coisas tão simples e que não deixam de ser interessantes por isso. Aliás eu acho o contrário: já me surpreendi diversas vezes ao ouvir algum questionamento ou teoria de uma criança e perceber que era uma coisa bem curiosa mesmo, principalmente na época que eu fazia mediação de leitura em creche e intervenção hospitalar.


Se pararmos pra pensar, as palavras são coisas engraçadas e lindas. Agora mesmo, há exatamente dez minutos, eu estava fazendo uma redação - treinando pro vestibular, como sempre... - e quando fui passar a limpo fiquei observando quão belas podem ser as palavras. E hoje também, no carro vindo pra casa - porque consegui uma carona da minha mãe maravilhosa na volta do cursinho! hahaha - estava conversando sobre política e discutindo sobre os candidatos e a tristeza que está essa eleição de 2010 quando eu disse: "É engraçado pensar que daqui há muitos e muitos anos vários jovens de cursinho vão estar bitolando tudo isso", me referindo à clara distinção que eu e muitas pessoas que eu conheço e converso veêm entre a escolha dos candidados e a classe social dos eleitores. Minha mãe, claro, perguntou o que era 'bitolando'. O que eu deveria responder? Eu nem sei se a palavra 'bitolar' existe, muito menos se eu posso conjugá-la dessa forma.


É muito legal quando surgem palavras novas que fazem todo o sentido do mundo. Às vezes elas nascem em uma conversa boba num barzinho tomando cerveja entre amigos ou então numa conversa de carro como foi essa de hoje. Isso porque as palavras são realmente instrumentos muito interessantes.


Antes de conseguir minha carona hoje - curioso que estou associando o texto inteiro com o meu dia, por pura coincidência (vai ver o assunto das palavras estava inerente ao meu dia e eu nem percebi) - eu estava no cursinho tirando dúvidas de física e depois fiquei esperando minha mãe lendo "Vidas Secas" (que recomendo a todos!), do Graciliano Ramos - livro do vestibular, claro. Neste livro diversas vezes o Fabiano, personagem principal, reflete sobre o seu jeito de ser, 'cabra', como ele diz. Ele e sua família mal se comunicam verbalmente e praticamente não se relacionam com outras pessoas, então não têm um vocabulário muito amplo e não sabem argumentar em situações que requerem um certo jogo de palavras, como na negociação do pagamento com o patrão, que rouba o dinheiro de Fabiano. A personagem sempre reflete sobre sinha Terta, que sabe usar bem as palavras e que ele acredita que não passaria pelas situações que ele passa por ter esta vantagem comunicativa.


Assim, eu fico pensando em como as palavras são importantes. A escolha lexical diz tanto sobre nossa formação, sobre nossa vida, nossas influências, nossas opiniões! Se pensarmos numa reportagem de revista, por exemplo, que diferença que uma ou duas palavras não podem fazer na interpretação dos fatos, não é?


Pois é... Hoje a primavera chegou para ma fazer refletir. Aliás, alguém já reparou que 'bigode' é uma palavra bem engraçada?


Esse texto não terá uma conclusão, ainda estou refletindo sobre o assunto....

Poema: O operário em construção - Vinícius de Moraes

Um longo poema de Vinícius de Moraes que lemos hoje em aula. Me tocou e tenho certeza que tocará quem ainda não o conhecia. Apesar de longo, podem confiar em mim, vale muito a pena a leitura! Lá vai...



E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:



– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.


E Jesus, respondendo, disse-lhe:


– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.


Lucas, cap. V, vs. 5-8.






Era ele que erguia casas

Onde antes só havia chão.

Como um pássaro sem asas

Ele subia com as casas

Que lhe brotavam da mão.

Mas tudo desconhecia

De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.


De fato, como podia

Um operário em construção

Compreender por que um tijolo

Valia mais do que um pão?

Tijolos ele empilhava

Com pá, cimento e esquadria

Quanto ao pão, ele o comia...

Mas fosse comer tijolo!

E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.


Mas ele desconhecia

Esse fato extraordinário:

Que o operário faz a coisa

E a coisa faz o operário.

De forma que, certo dia

À mesa, ao cortar o pão

O operário foi tomado

De uma súbita emoção

Ao constatar assombrado

Que tudo naquela mesa

– Garrafa, prato, facão –

Era ele quem os fazia

Ele, um humilde operário,

Um operário em construção.

Olhou em torno: gamela

Banco, enxerga, caldeirão

Vidro, parede, janela

Casa, cidade, nação!

Tudo, tudo o que existia

Era ele quem o fazia

Ele, um humilde operário

Um operário que sabia

Exercer a profissão.


Ah, homens de pensamento

Não sabereis nunca o quanto

Aquele humilde operário

Soube naquele momento!

Naquela casa vazia

Que ele mesmo levantara

Um mundo novo nascia

De que sequer suspeitava.

O operário emocionado

Olhou sua própria mão

Sua rude mão de operário

De operário em construção

E olhando bem para ela

Teve um segundo a impressão

De que não havia no mundo

Coisa que fosse mais bela.



Foi dentro da compreensão

Desse instante solitário

Que, tal sua construção

Cresceu também o operário.

Cresceu em alto e profundo

Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.



E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.


E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:



Notou que sua marmita

Era o prato do patrão

Que sua cerveja preta

Era o uísque do patrão

Que seu macacão de zuarte

Era o terno do patrão

Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.


E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

 
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– "Convençam-no" do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.


Dia seguinte, o operário

Ao sair da construção

Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!


Em vão sofrera o operário

Sua primeira agressão

Muitas outras se seguiram

Muitas outras seguirão.

Porém, por imprescindível

Ao edifício em construção

Seu trabalho prosseguia

E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.



Sentindo que a violência

Não dobraria o operário

Um dia tentou o patrão

Dobrá-lo de modo vário.

De sorte que o foi levando

Ao alto da construção

E num momento de tempo

Mostrou-lhe toda a região

E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.



Disse, e fitou o operário

Que olhava e que refletia

Mas o que via o operário

O patrão nunca veria.

O operário via as casas

E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!


– Loucura! – gritou o patrão

Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.




E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.


Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.